Wednesday, November 27, 2013

Caçando Carneiros [Haruki Murakami]



Além do mais belo par de orelhas na face da Terra, que misteriosa relação pode haver entre certas organizações do submundo japonês e um jovem publicitário de carreira enfadonha? Já não é sem tempo o público brasileiro ter acesso à obra de um dos mais interessantes e populares autores da atual safra de escritores japoneses. De forma geral, brota da literatura de Murakami um bem dosado niilismo pós-industrial que devassa a vida das gerações mais jovens num país em acelerada mutação. Sai de cena o Japão tradicional, entra o mundo da publicidade com seu corolário de mercantilismo exacerbado, que é o mesmo da megalópole frequentemente sombria em gestação nas mentes e nos corações de personagens urbanos até a medula dos ossos.


A SEGUNDA CARTA DO RATO

Tenho a impressão de que falei demais na carta passada. Mas já não consigo me lembrar do que falei.Mudei de novo para outra cidade. Esta é bem diferente da anterior. Muito tranquila. Se quer saber, tranquila demais para o meu gosto.Este lugar é, sob certos aspectos, o fim da linha para mim. Acho às vezes que cheguei até aqui naturalmente porque este era o meu lugar, ou que cheguei até aqui com muito esforço, apesar de este não ser o meu lugar. Não consigo emitir um juízo correto sobre a questão.Isto está muito mal escrito. Tão vago que você não entenda nada, provavelmente. Ou então talvez ache que exagero o sentido do meu próprio destino. Mas a culpa por você pensar assim é toda minha, claro.O que eu quero que você compreenda de verdade é que, quanto mais me esforço para lhe explicar a essência da situação em que me encontro, mais confusa se torna a carta. Mas sossegue: eu mesmo estou bem, aliás melhor que nunca.Vou falar mais objetivamente.Esta área, conforme já disse antes, é tranquila demais. Como não tenho o que fazer, passo os dias lendo (são tantos os livros que nem em dez anos daria conta de todos eles), ou ouvindo música em estações FM ou discos (são muitos os discos também). Não me lembro de ter ouvido tanta música de uma só vez nos últimos dez anos. Os Rolling Stones e os Beach Boys continuam na moda, o que não deixa de ser surpreendente. Tempo é uma coisa irremediavelmente encadeada, não é? Nós é que tendemos a nos confundir às vezes porque estamos habituados a cortá-lo de acordo com o nosso tamanho.Mas aqui não existe isso de tamanho só meu. Nem gente que elogie ou despreze o tamanho dos outros com base no próprio. O tempo corre naturalmente, como um rio de águas cristalinas. Ficando aqui, sinto-me livre, livre até o plano protoplasmático. Por exemplo, ponho os olhos num carro, mas me acontece às vezes de levar alguns segundos até que me venha a percepção de que aquilo é um carro. Tenho, é claro, uma percepção subjetiva, que no entanto não se casa direito com a objetiva. Esse tipo de coisa tem me acontecido com frequência cada vez maior nos últimos tempos. Deve ser porque vivi muito tempo em completa solidão.Estou a quase uma hora e meia da cidade mais próxima, andando de carro. Não é bem uma cidade, é um fragmento de uma cidade assustadoramente pequena. Acho que você nem seria capaz de imaginar. Mas é uma cidade, de um jeito ou de outro. Posso adquirir roupa, comida e gasolina. Se quiser, posso também ver pessoas.Durante o inverno, a estrada congela e impede quase totalmente a passagem de veículos. A estrada corta uma área pantanosa, que congela superficialmente adquirindo a consistência de um picolé. E por cima disso cai a neve, tornando impossível saber onde acaba a estrada e começa o pântano. É uma paisagem de fim de mundo.Cheguei no começo de março. Percorri essa paisagem de jipe com corrente nas rodas. Como um condenado a desterro na Sibéria, sabe? É maio agora, e a neve derreteu por completo. Durante o mês passado, avalanches estrondearam com frequência apara os lados das montanhas. Você já ouviu o ribombo de uma avalanche? Depois, quando a neve assenta, sobrevém um silêncio pesado, absolutamente perfeito. Silêncio total, tão completo que faz você perder a noção de onde está. A calma é grande. Faz quase três meses que não durmo com uma garota porque estou preso no meio destas montanhas. Não vejo nada demais nisso, mas, a continuar assim, sou capaz de perder o interesse pela própria humanidade, e isso não é exatamente o que eu quero. Decidi, portanto, sair em busca de mulheres assim que o tempo esquentar um pouco mais. Não tenho nenhuma intenção de me gabar, mas arrumar mulheres nunca representou problema para mim. Sou capaz de fazer aflorar boa dose de sex appeal, é só querer. (Por sinal, parece-me que vivo ultimamente num mundo de "é só quereres".) De modo que garotas não são o problema. O problema é que eu próprio não me sinto à vontade com essa minha capacidade. Melhor explicando, a uma certa altura já não consigo distinguir onde eu termino e onde começa meu sex appeal. Mais ou menos como não saber onde Laurence Olivier termina e o Otelo começa. E, como não consigo voltar atrás no meio do caminho, acabo mandando tudo às favas. E incomodando muita gente no processo. Até agora, minha vida tem sido uma sucessão de episódios semelhantes.Mas, para minha felicidade (é realmente uma felicidade), não tenho nada para mandar às favas neste momento. Esta sensação é espetacular. Se existe alguma coisa digna de ser mandada às favas, essa coisa sou eu. A ideia não deixa de ser atraente. Este trecho está trágico demais. O pensamento em si nada tem de trágico, mas posto em palavras, torna-se.Paciência.Do que eu falava mesmo?De mulheres, é claro.Toda mulher já nasce acoplada com uma gavetinha atulhada de bugigangas que não têm nenhum sentido. Eu as adoro por isso. Sou capaz de puxar cada uma das bugigangas para fora das gavetinhas, espanar a poeira acumulada e investigar-lhes o sentido. Nisso consiste, acho eu, a verdadeira natureza do meu sex appeal. E daí? Daí, nada. Só me resta deixar de ser o que sou.Por essas e por outras, penso neste momento apenas em sexo, pura e simplesmente. Se concentro todo o intersse neste única alvo, sexo, não tenho de me preocupar se estou sendo trágico ou não.É o mesmo que beber cerveja à beira do mar Negro.Releio a carta e acho que está escrita com muita honestidade, apesar dos trechos um tanto ou quanto desprovido de nexo. Sobretudo, gostei da monotonia.E, pensando bem, esta carta não foi sequer escrita para você. Ela foi provavelmente escrita para o correio. Mas não me censure. Daqui até a agência do correio é uma hora e meia de jipe.A partir desse trecho, escrevo para você, realmente.Tenho dois pedidos a lhe fazer. Nenhum é de natureza urgente, de modo que você poderá desincumbir-se deles quando lhe for mais conveniente. Eu lhe serei grato para sempre. Três meses atrás eu provavelmente não teria coragem de lhe pedir coisa alguma. Hoje, sinto-me capaz disso. É um sinal de progresso, ao menos.Um dos pedidos é de natureza sentimental. Tem relação com o "passado". Cinco anos atrás, quando parti da nossa cidade, eu estava com muita pressa e bastante perturbado. Por isso, esqueci-me de me despedir de algumas pessoas. Objetivamente falando, de você, de J e de uma garota que você não conhece. Com relação a você, sinto que vou encontrá-lo uma vez mais, quando então me despedirei formalmente. Quanto aos outros dois, acho que não terei essa oportunidade. De modo que, se algum dia você retornar à nossa cidade, gostaria que se despedisse deles por mim.Sei muito bem que estou abusando. Na verdade, eu deveria escrever uma carta para os dois. Mas, falando com franqueza, prefiro que você vá até lá e se encontre com eles pessoalmente. Acho que assim transmito melhor o que sinto do que por intermédio de uma carta. Anexa, mando outra folha com o endereço e o telefone dela. Se ela tiver mudado de endereço ou se casado, deixe quieto. Não a procure. Mas, se ainda mora no mesmo lugar, encontre-se com ela e diga-lhe que mandei lembranças.E lembranças também ao J. Beba a minha quota de cerveja com ele.Esse é o primeiro pedido.O segundo é um tanto inusitado.Anexo à carta uma fotografia. Uma foto de carneiros. Quero que você a exponha publicamente. Tenho consciência de que este também é um pedido abusivo, mas não tenho mais ninguém a quem recorrer. Posso lhe legar em troca todo o meu sex appeal, mas por favor, atenda a este pedido. A foto é muito importante para mim. Espero poder explicar-lhe o por que num futuro próximo.Anexo também um cheque. Use-o para cobrir futuras despesas. Não se preocupe com minha situação financeira. Não tenho onde gastar, morando aqui. Além do mais, é tudo que posso fazer no momento.E lembre-se: beba minha quota de cerveja à minha saúde.

3 comments:

  1. Oi, aqui é Cacha falando. Desapareci do blog e da sala, mas estou retornando (pelo menos ao blog) e logo me deparo com algo do Haruki Murakami! Estou lendo esses dias o livro Após o Anoitecer, do autor. Bom saber que gostas também. Abraços da Cacha!

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  2. Oi, K-chan! Que felicidade receber notícias suas! Ah... tenho muita coisa a dizer, mas deixemos isso para outra hora. Eu li esse livro e fiquei maravilhado! Também não fazia ideia de que você gostasse dele. O curioso é que agora estou lendo Dance Dance Dance, do mesmo e ele fala sobre "ligações". Acho que o que ocorreu aqui foi uma espécie de ligação. Obrigado por comentar!

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  3. Oi Gabriel San. Cacha falando outra vez... Pois é, gostei do livro do murakami. Acho que pega bem essa decadência do Japão e do mundo. Ligações... Não estou tendo tempo mesmo, mas terei em Dezembro e no ano que vem. Espere e teremos mais contato. Beijos.

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